O Conselho Federal e a Psicologia Chapa-branca.
“Posso
não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte teu direito de
dizê-lo”. Voltaire
A
atual gestão do Conselho Federal de Psicologia tem se notabilizado por uma
série de vedações arbitrárias ao exercício profissional da psicologia. Agindo
desta forma, a autarquia federal exorbita o rol de atribuições que lhe foi conferido
pela legislação pátria. A Lei
5.766 de 1971, no seu artigo 6º,
alíneas “c” e “d”, é bastante clara quanto aos limites do poder regulamentador
da autarquia:
Art.
6º - São atribuições do Conselho Federal:
c) expedir as resoluções necessárias ao
cumprimento das leis em vigor e das que venham modificar as atribuições e
competência dos profissionais de Psicologia;
d) definir nos termos legais o limite de
competência do exercício profissional conforme os cursos realizados ou provas
de especialização prestadas em escolas ou institutos profissionais
reconhecidos;
Contrariando
os comandos expressos na lei, o CFP tem sido useiro e vezeiro na criação de
óbices ao livre exercício profissional dos psicólogos; e, por isso mesmo,
tornou-se alvo não só de questionamentos técnico-científicos como, em alguns
casos, teve decretada a nulidade de suas resoluções pela via judicial. É o caso
da resolução nº 10/2010, que criou enormes embaraços
ao chamado “Depoimento Sem Dano”, um projeto pioneiro implantado pelo Tribunal
de Justiça do estado do Rio Grande do Sul, no qual psicólogos jurídicos se
colocam na condição de intérpretes das crianças vítimas de violência sexual no
momento em que são inquiridas pelo magistrado durante audiência. Tal
procedimento tem como objetivo evitar que a atmosfera aversiva da persecução
penal contribua para revitimização da criança, acrescentando sofrimentos desnecessários
ao trauma vivenciado. Portanto, é uma medida protetiva que encontra amplo
respaldo legal no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.
No
Mandado de Segurança Nº 5017910-94.2010.404.7100, impetrado pelo governo do RS,
a juíza federal Marciane Bonzanini foi enfática ao
declarar que atuação do Conselho Federal de Psicologia está adstrita ao texto
da Lei 5.766/71, de modo que a autarquia não competência para expedir
resoluções que modifiquem o conjunto de atribuições dos psicólogos, já
previamente estabelecido no texto da Lei
4.119/62. O limite de sua competência se
restringe ao poder de regulamentar o estrito cumprimento desta norma. Ainda de
acordo com a juíza, “essa é a essência do poder regulamentar”, sendo tal poder
o único de que desfruta a autarquia em nosso ordenamento jurídico.
A juíza federal Marciane Bozanini prossegue sua argumentação
afirmando que a resolução 10/2010, ao vedar uma prática profissional, extrapola
o âmbito de competência do CFP e afronta o inciso XIII do art. 5º da
Constituição Federal (“é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou
profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”). A
prerrogativa de regulamentar e disciplinar a profissão, segundo a magistrada,
só existe nos limites da ética profissional, ressalvando-se que o pretexto
ético jamais deve ser usado como artifício para “burlar a regra constitucional”
(ver sentença
judicial).
Ao
analisar o teor da resolução 10/2010, a magistrada pode constatar o “furor
legisferante” do Conselho Federal de Psicologia, que, além de usurpar
atribuições do parlamento brasileiro, move-se dentro de uma perspectiva teórico-ideológica
bastante particular. O que a magistrada talvez não saiba é que o protagonismo
ideológico da atual gestão do CFP vem se mostrando uma compulsão praticamente irrefreável,
e já foi alvo de exaustiva denúncia em outro artigo.
No que diz respeito à resolução 01/99, que versa sobre a assistência psicológica aos homossexuais,
as posições teórico-ideológicas do CFP também podem ser identificadas com
nitidez no texto do documento. E aqui convém esclarecer que pouco importa qual
arcabouço teórico ou inspiração ideológica possa um psicólogo valer-se para
opinar sobre o tema tratado na referida resolução. O que se pretende garantir é que a
pluralidade teórica e o livre exercício da atividade profissional e científica
prevaleçam sobre os espasmos totalitários de um grupo politicamente organizado.
Tornou-se prática corrente na psicologia brandir o
código internacional de doença - CID como forma de chancelar concepções
teóricas acerca de patologias e desordens do comportamento. Embora o termo
homossexualidade não conste expressamente no elenco de categorias nosológicas
dos códigos internacionais, tal orientação sexual pode, como qualquer outra,
assumir formas patológicas passíveis de tratamento, como atesta o próprio CID
10 (ver F66). E mesmo na hipótese de que todas as
manifestações da sexualidade venham um dia a ser normalizadas por um documento
oficial, isso não seria impeditivo a que outros estudiosos do comportamento
humano postulassem teoricamente uma opinião diversa. Os critérios de
normalidade e anormalidade, de patologia ou doença, segundo o eminente filósofo
e médico francês Georges Canguilhem, autor do livro O Normal e o Patológico, pressupõem concepções
filosóficas, ideológicas e pragmáticas do profissional (ver Paulo
Dalgalarrondo, Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais). Embora
o CID seja objeto de acordo entre um grupo de estudiosos, não pode ser tomado
como a última palavra em termos de critério diagnóstico, até porque tais
estudiosos também não estão isentos de sofrer pressões de ordem política. É bom
que se diga que os códigos internacionais de doença não são uma espécie de bíblia
da psicologia clínica, como querem os fundamentalistas que fizeram do CFP a meca
do marxismo cultural. É bom lembrá-los de que o pensamento científico não
conhece tabus e jamais caberá na cama de Procusto do politicamente correto.
Voltando
à resolução 01/99, mais precisamente no seu artigo 4, que impede os psicólogos de se pronunciarem “de modo a reforçar
preconceitos sociais existentes” (sic), a conclusão que se tira deste comando é
que, não importando quão empiricamente fundamentada esteja a posição do
psicólogo acerca de um determinado tema, se essa posição diverge de uma
pretensa “psicologia oficial” do CFP, ela será fatalmente rotulada como
preconceito.
A
título de ilustração, vamos recorrer a um dos principais discípulos do dr.
Freud, o psicanalista austro-húngaro Sandor Ferenczi. Num texto intitulado O Homoerotismo: Nosologia da
Homossexualidade, ele escreve:
“Confessarei
desde já que realmente quebrei a cabeça para resolver este problema [relativo
às particularidades da constituição sexual e as experiências que estão na base
da homossexualidade]. O único objetivo de minha comunicação é relatar alguns
dados que são fruto da experiência e apresentar pontos de vista que se me
impuseram, quase por si mesmos, ao longo
de vários anos de observação psicanalítica de homossexuais. Eles deveriam
facilitar a classificação nosológica correta dos quadros clínicos da
homossexualidade.
Sempre tive a
impressão de que, em nossos dias, aplicava-se o termo ‘homossexualidade’ a
anomalias psíquicas demasiado diferentes e fundamentalmente sem relação alguma
entre si. A relação sexual com o próprio sexo é apenas, com efeito, um sintoma,
e esse sintoma tanto pode ser a
manifestação de doenças e transtornos muito diversos do desenvolvimento, como
uma expressão da vida psíquica normal. Portanto, era pouco provável, de
imediato, que tudo o que designa hoje pelo termo genérico ‘homossexualidade’
pertencesse realmente a uma só entidade clínica.
Que
se recorra a outros fundamentos teóricos para discordar, no todo ou em parte,
da tese apresentada na citação, é algo absolutamente legítimo e até necessário.
A evolução da ciência se dá precisamente pelo embate das conjecturas e
refutações. O que não se pode fazer, sem incorrer em ato de leviandade, é acusar
o referido psicanalista de simples “preconceito”. Todos sabem que o termo
“pré-conceito” denota atitudes irracionais, irrefletidas e infundadas, o que não
se aplica, de modo algum, a um estudioso da sexualidade humana que dedicou boa
parte de seu tempo à compreensão do assunto.
Donde
se conclui que o uso da palavra preconceito, no texto da resolução 01/99, não
passa de um simples estratagema retórico, cujo único objetivo é o de abafar
qualquer possibilidade de uma discussão racional em torno do tema, evocando
reações emocionais de repulsa ou ódio frente a quaisquer opiniões divergentes. Se
existe uma definição exata de preconceito, aí está ela...
Se o
CFP continuar editando resoluções com essa linguagem apelativa, típica de
panfletos estudantis, não vai demorar muito para que todo e qualquer diagnóstico
em psicologia seja tomado como preconceito ou prática discriminatória. Ora,
qualquer psicólogo principiante sabe que não existem diagnósticos sem
discriminações, distinções, classificações, descrições e comparações. Porém,
quando a resolução 01/99 emprega o termo ‘discriminação’, o faz de modo semanticamente
condicionado pelo viés ideológico para eliciar na platéia respostas automáticas
de oposição – da mesmíssima forma com que os cães de Pavlov babavam ao som da
sirene.
Mais
cedo ou mais tarde, quando todos os portadores de transtorno ou desordem mental
assimilarem, sem exceção, a tese contida na resolução do CFP, também eles
começarão a se sentir alvo de preconceitos e discriminações sociais diversos, ao
ponto de fazer suas suscetibilidades pessoais inviabilizarem a própria
atividade profissional e científica. Ironicamente, quando esse dia chegar, o
direito à patologia estará assegurado justamente por aquela instituição que,
por princípio, deveria promover a saúde mental e zelar pela respeitabilidade
profissional dos psicólogos; enquanto que os códigos internacionais de doença,
hoje usados como “argumento de autoridade” para referendar causas politicamente
corretas, correrão sério risco de ser queimados em plena praça pública. Ou,
quem sabe, na próxima parada do orgulho gay.
Luciano
Garrido é psicólogo e especialista em Direitos Humanos.
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