BLOG DO JOSIAS
02/10/2012 - 6:19
“Tudo não passou de caixa dois de campanha” vai ficar como a frase-símbolo do poder petista quando, no futuro, a historiografia quiser contar como era cínico o Brasil de outros tempos. De tão repetida pelo PT, pelos aliados do governo e pelos advogados dos réus do Supremo, a frase virou um código.
Quando ela aparece, já se sabe que os acusados reconhecem que este é um país sério, que houve crime e que quase ninguém está acima da lei… eleitoral. Bem verdade que, por essa lei, o crime já prescreveu. Mas, que diabo, não se pode ter tudo na vida. Não dá para eliminar a ironia e a pantomima da história política brasileira assim, do dia pra noite.
Reunido há dois meses para julgar o escândalo, o STF é formado na sua maioria por ministros nascidos das canetas de Lula e de Dilma Rousseff. Misturam-se no plenário magistrados da linha Lewandowski e julgadores da linha Barbosa. De repente, os magistrados do segundo grupo decidiram que chegou a hora de a marmelada desandar. Concluiu-se que houve compra de votos.
A conclusão é preocupante. Esse negócio de ficar chamando os crimes pelo nome verdadeiro, sem enfemismos, ainda vai dar problema. Vem aí o julgamento do mensalão do PSDB de Minas. Se a moda pega, o que será da democracia brasileira?
O mensalão virou escândalo quando Roberto Jefferson levou os lábios ao trombone, em 6 de junho de 2005. Dias depois, em 17 de julho de 2005, Lula diria naquela célebre entrevista parisiense, veiculada em programa de nome sugestivo (‘Fantástico’): “O que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente. […] Não é por causa do erro de um dirigente ou de outro que você pode dizer que o PT está envolvido em corrupção.” Lula falou em reforçar o combate aos malfeitos. Pronunciou outra expressão-mantra do Brasil dos escândalos: “Doa a quem doer.” (Reveja abaixo).
Três dias antes da entrevista de Lula, em 14 de julho, Marcos Valério depusera na Procuradoria da República. Dissera que tudo não passara de caixa dois. No dia seguinte, 15 de julho, Delúbio Soares o ecoaria, reconhecendo aos inquiridores da mesma Procuradoria que ordenara a Valério o repasse de dinheiro para que os aliados honrassem despesas de campanhas –a de 2002 e a de 2004.
As violas de Valério e Delúbio haviam sido afinadas em reuniões subterrâneas realizadas no eixo São Paulo-Brasília-Belo Horizonte. A adoção da frase-símbolo –“Tudo não passou de caixa dois de campanha”— fora endossada pela direção do PT –o presidente José Genoino à frente— e pelo defensor de Delúbio, o advogado Arnaldo Malheiros.
Ouvido, José Dirceu, o então todo-poderoso chefe da Casa Civil, endossara a saída. Informado, o ministro da Justiça da época, Márcio Thomaz Bastos, levara a fórmula a Lula como um mal menor para o governo. Numa conversa testemunhada por Antonio Palocci, ainda um respeitável czar da economia, Lula endossara a saída, propalando-a depois na desconversa de Paris.
Mal comparando, Valério, o PT, o governo e sua base aliciada ajeitaram para o mensalão uma explicação análoga à que a ditadura empinara no episódio do Riocentro. Com uma diferença: no caso da bomba que explodiu no puma a explicação oficial foi a de que se tratava de um complô da esquerda. No mensalão, o complô era da direita. Envolvia a oposição preconceituosa, a imprensa golpista, e, mais tarde, também a Procuradoria sensacionalista.
A tese tinha lá o seu apelo. Ou o governo que retirava os brasileiros da miséria era vítima de um complô coletivo ou o país estava diante de um gigantesco mal-entendido. Uma sequência de fatos mal explicados que, submetidos à interpretação de mentes maliciosas, convertia o partido da ética e o governo dos pobres numa fraude nunca antes vista na história desse país.
O melado escorria normalmente. Súbito vem o Supremo com a novidade de querer injetar lógica no processo. Em vez de reconhecer a perfídia humana como um dado da realidade, os julgadores querem fazer o Brasil acreditar que tudo o que está na cara, todas as provas reunidas pela Polícia Federal revelam a ação de “marginais do poder”, na definição crua do ministro Celso de Mello.
Na semana passada, como que farejando o cheiro de queimado, um grupo de brasileiros ilustres alertara o país para o que estava por vir. Em carta aberta assinada por gente de grife –de chefões dos movimentos sociais a jornalistas e intelectuais companheiros— repudiara-se a superexposição do julgamento.
O texto criticara “parte da cobertura na mídia e até mesmo reações públicas.” Manifestara preocupação com a conversão de ministros do STF em “heróis”. “Somos contra a transformação do julgamento em espetáculo, sob o risco de se exigir – e alcançar – condenações por uma falsa e forçada exemplaridade. Repudiamos o linchamento público e defendemos a presunção da inocência.”
Assinam a peça personagens como João Pedro Stédile, do insuspeito MST; Fernando Moraes, biógrafo de José Dirceu; Luiz Carlos Barreto, produtor da fita ‘Lula, o filho do Brasil’; e até Luiz Carlos Bresser Pereira, tucano e amigo de FHC. Os desdobramentos da encrenca revelam que os signatários da carta estavam cobertos de razão.
Sob os holofotes da TV Justiça, a maioria dos ministros do Supremo, como que rendida à cobertura da parte da mídia que insiste em desvirtuar o combinado, resolveu aderir ao complô golpista de direita. O STF se excede. E estava entendido que, no Brasil, só o cinismo e a corrupção podiam ser excessivos.
Admitindo-se a compra de apoio político no Congresso, será necessário apontar os compradores. Insista-se: esse negócio de chamar os crimes pelo nome –corrupção, peculato, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha…— vai acabar dando problema. Não bastasse a interrupção dos negócios que transitavam pelo esquema, ainda querem impor a cadeia! O Brasil cínico das sombras era mais simples.
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